segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

O Outro



“Je me vois, donc je suis”
(Claude Cahun)

Um auto-retrato não é um auto-retrato. É antes um olhar para si de si, nunca será um olhar-se de fora de si. A verdade é que, para além do exercício de se colocar diante de si, como perante um espelho, o que se produz é sempre uma imagem de si para ser vista. De fora, do exterior, por um outro, que verá o que a sua natureza, a sua condição, o seu conhecimento do outro que ali está, ou não está, já que é apenas uma imagem, lhe permite. Não há janelas abertas, não há chaves de códigos a descriptar, não há explicações, clarificações, cauções, marcas de água que levem ao ser que ali está, ou não – mas o seu reflexo, o seu duplo. A não ser... a não ser que se procure ler a informação inscrita na imagem: uma sombra inesperada à esquerda, reflexos que atravessam a luz e a sombra, a sombra e a luz, um dedo engatilhado, um olhar sólido, mas sem objecto.

Indecifrável, aquele duplo, que sou eu sem o ser, que sou ele sem saber bem quem ele é, que não pode ser eu apesar da minha intenção de que o fosse ou que fosse qualquer parte de mim. Aquele duplo, que eu finjo desconhecer e persigo incansavelmente, que mantém as suas distâncias, que se esconde ou se mostra evitando ou procurando o reconhecimento e o julgamento, aquele duplo, que não me olha e nunca saberei se me vê, exponho-o para melhor me ocultar, afastado de mim, aquele duplo, imagem especular do meu rosto, parece que me diz: “Eu sou o outro”(1).

No entanto, de si para si, de si para a imagem de si, haverá um fio invisível que os liga e um abismo que os separa.


(1) Frase que Gerard de Nerval terá escrito directamente sobre o seu retrato (daguerreótipo de Adolphe Legros ou Nadar em 1854)

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Rostos sem rosto


Rostos sem rosto

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Rostos sem rosto

Não há um momento nestes retratos. Não há uma narrativa, uma história, um caso. São todos em segunda mão. Foram encontrados, apartados de referências que os pudessem situar ou tornar mais compreensíveis, foram descontextualizados. Mesmo que nalguns casos possa haver informação suficiente para lhes ser atribuída uma identidade, um lugar, um país, permanecem suspensos do olhar que sobre eles possamos ter, ou produzir, isto é, interpretar.

São imagens públicas, estão ali disponíveis para que as vejamos. Intencionalmente. São imagens que cumprem uma função, mercantil, de exaltação ou simplesmente informativa. No entanto, quando foram fotografadas, foi-lhes retirada essa função, os retratos que as integravam ganharam uma outra dimensão ao serem “arrancados” do seu contexto, como Jacques Villeglé fazia literalmente com os cartazes que descolava das ruas conferindo-lhes uma existência artística. É o exemplo da prática de muitos artistas contemporâneos com outros artefactos. Não houve uma intenção de reproduzir os originais mas, pelo contrário, de lhes conferir um outro sentido, inserindo-os noutras categorias. A sua nova “condição” guarda e tira partido das marcas da intervenção de factores externos, intencionais ou não, que podem ter sido a mão humana, as condições meteorológicas, um incidente fortuito ou simplesmente a deterioração causada pelo tempo. O trabalho do autor é propor novas leituras que confiram diferentes propostas de interpretação do que escolheu ver e isolar do objecto ou da superfície.

Qual o sentido deste trabalho no âmbito da problemática da identidade? De algum modo, por diferentes razões, há um efeito de estranheza nos rostos, quando há um rosto: os retratos estão rasgados, mutilados, fragmentados ou deteriorados. Alterada a sua forma inicial, perderam algo da sua identidade reconhecida sem que se tenham tornado outro. Foram espoliados da sua história, da sua circunstância, do seu contexto, da sua individualidade e recolocados num outro espaço, ao lado de desconhecidos, com uma identidade postiça genérica. E, no entanto, são retratos e não apenas representações de alguém com um nome, uma profissão, uma nacionalidade, porque essa qualidade lhes foi atribuída pelo autor que as inseriu num suporte fotográfico, mesmo quando o rosto foi arrancado: será alguém sem rosto.